Rev. Marcelo Lemos
Fundamentalismo é mais uma daquelas palavras que
de tanto ser usada, e indiscriminadamente, corre o risco de não mais ter
qualquer significado, se é que ainda tem.
Recentemente,
por exemplo, soube que algumas pessoas andam comentando o “fundamentalismo” da
nossa Igreja
(IARBrasil), provavelmente por nossa recusa em ordenar
mulheres. De fato, isso é algo
fundamental para nós, de modo
que, não existe nada de estranho em nos considerarem
fundamentalistas.
Na verdade há algo estranho sim, mas isso ficará mais claro no decorrer do
texto! O problema talvez esteja no termo “fundamentalismo” em si.
Ainda
tomando a Ordenação Feminina como exemplo, para aqueles que a defendem, o dito
igualitarismo também é um conceito fundamental e, portanto,
seria justo que eles também sejam tidos como fundamentalistas, a
seu próprio modo? Indo além, tomando o caso de um liberal, que normalmente usa
o termo “fundamentalista” como uma arma para atacar os cristãos mais conservadores,
também eles possuem seus próprios fundamentos (nem que seja a
falta de fundamento, na pior das hipoteses!). No fim das contas, até os
liberais são fundamentalistas...
Justiça seja
feita, porém. Há um motivo histórico pelo qual o termo “fundamentalismo” ficou
tão surrado, e pejorativo. Quase todo mundo foge dessa palavra... Mas nem
sempre foi assim. Quando alguns cristãos americanos resolveram erguer sua voz
contra as loucuras da Teologia Liberal, nos Estados Unidos, se auto-denominaram
“fundamentalistas”. Nascia, ali, o movimento popularmente chamado
Fundamentalismo Bíblico – que nada tem a ver com o que fazem fanáticos ligados
ao Islã. O Fundamentalismo Bíblico não era uma nova Igreja, mas um movimento
teológico que influenciou muitos ministros e leigos, acabando por impactar
dominações inteiras, e dividindo outras no decorrer de sua história.
Originalmente,
o movimento Fundamentalista faria um bom trabalho. Seu alvo era manter a
ortodoxia de doutrinas centrais ao Cristianismo como a Encarnação, a Concepção
Virginal, a Inspiração das Escrituras, a Doutrina do Pecado, e assim por
diante. No entanto, o movimento acabou fechando-se em si mesmo, e virou suas
costas ao mundo, transformando boa parte do evangelicalismo num gueto
irrelevante para a cultura moderna. A Igreja abriu mão do Mandato Cultural, e
ao invés de assumir seu papel transformador, resignou-se ao fracasso histórico,
lutando para salvar-se como um pequeno rebanho.
Além disso,
o movimento Fundamentalista assumiu para si a tarefa da Igreja “pura”, um
verdadeiro mito. Mito que ainda não morreu. Boa parte dos chamados
neo-puritatos de hoje, só para citar um exemplo, perseguem a mesma fenix. No
passado ou no presente, um dos problemas de acreditarmos na possibilidade de
uma Igreja pura é não haver mais separação entre doutrinas fundamentais e assuntos
secundários, pois tudo passa a ser visto como fundamento de fé,
até mesmo as coisas mais inusitadas e pequenas. Num cenário onde tudo é questão
fundamental até a menor discordância teológica pode criar uma divisão no corpo,
como tem acontecido em muitos casos. Isso também impede o diálogo respeitoso
entre as comunidades de fé, e o ecumenismo cristão continua na fase da
infância, já que cada um acaba se achando mais 'puro' que o outro, e talvez até
mais cristão.
O que
impressiona é que cristãos que se declaram reformados possam assumir posturas
puristas, já que isso contradiz a própria tradição da Reforma. Tenho uma amiga,
cuja família frequenta uma igreja “neo-puritana”. Segundo seu relato, o pessoal
lá é tão 'puro' que não aceita cristãos que assistem TV, cantam músicas fora
dos Salmos, ou não fazem suas mulheres usarem chapéu durante o culto.
Honestamente, acho que eles tem todo direito de servirem a Deus desse modo,
assim como eu tenho o direito de usar clamisa clerical, sobrepeliz e típete na
Liturgia; o que questiono é seu espírito separatista, quase sectário.
Certamente não aprenderam isso com a Reforma. Muito menos com Calvino, de quem
são herdeiros.
Isso faz
pensar se alguns reformados realmente conhecem a Teologia da Reforma,
especialmente a respeito da eclesiologia. João Calvino, por exemplo, afirma em
suas Institutas, que podemos buscar a unidade com todas as
Igrejas, desde que preguem fielmente a Palavra, e administrem corretamente os
Sacramentos. Se tais elementos estão presentes em uma Igreja, podemos manter
comunhão com ela, diz Calvino, “mesmo que nelas existam muitas outras
faltas!” (Institutas, Livro IV, 1, 12).
Pode parecer
que Calvino exigia, então, que os outros cristãos pregassem exatamente como
ele, e administrassem os Sacramentos exatamente como ele. Mas
não é verdade. Ele vai ainda mais longe, para escândalo de muitos reformados
que conheço, e de 'fundamentalistas' de outras tradições evangélicas.
“Vou ainda
além: digo que elas podem ter algum vício ou defeito em sua doutrina, ou na
maneira de administrar os Sacramentos, e nem por isso devemos nos afastar de
sua comunhão” (Instituta, Livro IV, 1, 12).
Surpreendemente,
Calvino, a seguir, passa a defender um modelo de unidade cristã que é, desde
aqueles dias, uma marca bem distintiva da tradição anglicana, ao qual
denominamos “via média”, ou “caminho do meio”. Na verdade, a Igreja Anglicana
nasceu nos dias da Reforma, e manteve esse princípio até os dias de hoje. Mas,
do que se trata? Segundo esse princípio, existem doutrinas fundamentais e
doutrinas secundárias, e uma vez que as doutrinas fundamentais são mantidas, o
que é secundário não deve nos separar da comunhão uns com os outros. Em certo
sentido, o Anglicanismo não apenas deu um liturgia reformada para os cristãos
ocidentais, como também nos legou o verdadeiro ecumenismo cristão. E é
exatamente desse ecumenismo cristão que Calvino vai nos falar.
“Porque nem
todos os artigos da doutrina são igualmente importantes. Existem alguns tão importantes
que ninguém pode questionar que são os fundamentos da Religião cristã. Por
exemplo: que existe um só Deus, que Jesus Cristo é Deus e Filho de Deus, que
nossa salvação está exclusivamente na misericórdia de Deus, e doutrinas
semelhantes a essas” (Idem).
Que temos
aqui senão uma declaração apaixonada do ethos anglicano?
Paradoxalmente, por esse mesmo ethos muitos reformados atuais nos criticam,
como se nós também não fossemos tão reformados quanto eles. Sim, existem pontos
de fé que são secundários. Sim, podemos manter comunhão com Igrejas que não
pensam exatamente como nós, mesmo quando as consideramos impuras. Afirmar isso
não nos faz menos reformados, muito pelo contrário!
“Há outos
pontos com os quais nem todas as Igrejas concordam, e nem por isso quebram a
unidade. Se uma Igreja, por exemplo, diz que a alma é transportada aos céus
logo após a morte, e outra diz, sem se atrever a identificar onde, que
simplesmente vivem com Deus, quebram a caridade e o vínculo de união? (…) Com
isso nos quer dizer que se surge entre os cristãos alguma diferença em pontos
que não são absolutamente essenciais, não devem ocasionar divisões entre eles.
Seria muito melhor estar de acordo em tudo; mas como não existe esse que
conheça todas as coisas, ou precisaremos romper com todas as outras igrejas, ou
precisaremos perdoar a ignorância aos que erram em coisas que não afetam a
salvação, e não violam nenhum ponto principal da religião cristã” (Idem).
Quanto
iniciei, bem recentemente, a série
“Fundamentos de Fé”, um estudo de teologia cristã
baseada no Credo Apostólico, afimei exatamente isso. Contudo, recebi algumas
criticas interessantes. Se iniciei esse artigo falando daqueles que nos
consideram “fundamentalistas”, encerro falando daqueles que nos consideram “liberais”,
uma vez afirmarmos que existem pontos doutrinários que são de segunda
importãncia... Eu entendo essa crítica vinda de muitos lugares, menos de
círculos que se declaram reformados, pois admitir a catolicidade da fé cristã,
ou seja, que a Religião Cristã é maior que nosso próprio umbigo, é uma
caracterista da própria Teologia Reformada.
Sim, eu,
como anglicano, sou fundamentalista: não abro mão daquilo que é doutrina
fundamental da Religião de Jesus. E no mais? Bem, marquem um churrasco e a
gente conversa...